3 mai 2010

Interview avec Chico Buarque - Entrevista com Chico Buarque

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Batendo uma bola com Chico Buarque

Texto intro: Thiago Araújo
Entrevista: Daniel Cariello e Thiago Araújo



Intro


"Se tiver bola, eu dou a entrevista". Essa foi a única exigência do nosso companheiro de pelada, Chico Buarque, numa caminhada entre o metrô e o campo. Uma bola. E eu acabara de informar que o dono da redonda não viria à pelada de quarta-feira. Éramos dez amantes do futebol, órfãos.


Sem saber se esse era um gol de letra dele para fugir da solicitação de seus parceiros jornalistas, ou uma última esperança, em forma de pressão, de não perder a religiosa partida, eu, que não creio, olhei para o céu e pedi a Deus: uma pelota!


Nada de enigma, oferenda ou golpe de Estado. Ele estava ali, o cálice sagrado da cultura brasileira, que se sucumbiu ao ver não uma, mas duas bolas chegarem à quadra pelas mãos de Mauro Cardoso, mais conhecido como Ganso. A partir daí, nada mais alterou o meu ânimo e o da minha dupla de ataque-entrevista, Daniel Cariello. Apesar de termos jogado no time adversário do ilustre entrevistado, tomado duas goleadas consecutivas de 10 x 6 e 10 x 1, tínhamos a certeza de que ele não iria trair dois dos principais craques do Paristheama, e sua palavra seria honrada.


Mas o desafio maior não era convencer o camisa 10 do time bordeaux-mostarda parisiense a ceder duas horas de sua tarde ensolarada de sábado. O que você perguntaria ao artista ícone da resistência à ditadura, parceiro de Tom Jobim, Vinicius de Morais e Caetano Veloso, escritor dos best sellers Estorvo, Benjamin, Budapeste e Leite Derramado, autor de A banda, Essa moça tá diferente, O que será (obra prima sacrificada por Claude Nougaro, travestida em Tu Verras), Construção e da canção de amor mais triste jamais escrita, Pedaço de mim?


Admirado e amado por todas as idades, estudado por universitários, defendido por Chicólatras, oráculo no Facebook, onipresente nas manifestações artísticas brasileiras – sua modéstia diria “isso é um exagero”, mas sabemos que não é –, sua reação imediata ao ser comparado a Deus foi “em primeiro lugar, não acredito em Deus. Em segundo, não acredito em mim. Essa é a única coisa que pode nos ligar. Então, pra começo de conversa, vamos tirar Deus da mesa e seguir em frente”.


Enfim, ainda não creio que entrevistamos Deus, quase sem falar de Deus. Mas foi com ele mesmo que aprendi uma lição, talvez um mandamento: acreditar em coisas inacreditáveis.



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Entrevista


Você assume que não acredita em Deus, mas existem trechos nas suas músicas como “dias iguais, avareza de Deus” ou “eu, que não acredito, pedi a Deus”. No Brasil, é complicado não acreditar em Deus?


Eu não tenho crença. Eu fui criado na Igreja Católica, fui educado em colégio de padre. Eu simplesmente perdi a fé. Mas não faço disso uma bandeira. Eu sou ateu como o meu tipo sanguíneo é esse.


Hoje há uma volta de certos valores religiosos muito forte, acho que no mundo inteiro. O que é perigoso quando passa para posições integristas e dá lugar ao fanatismo. O Brasil talvez seja o pais mais católico do mundo, mas isso é um pouco de fachada. Conheço muitos católicos que vão à umbanda, fazem despacho. E fica essa coisa de Deus, que entra no vocabulário mais recente, que me incomoda um pouquinho. Essa coisa de “vai com Deus”, “fica com Deus”. Escuta, eu não posso ir com o diabo que me carregue? (Risos). Tem até um samba que fala algo como “é Deus pra lá, Deus pra cá – e canta - Deus já está de saco cheio” (risos).



Você já foi em umbanda, candomblé, algo do tipo?


Já, eu sou muito curioso. A mulher jogou umas pipocas na minha cabeça, sangue, disse que eu estava cheio de encosto. Eu fui porque me falaram “vai lá que vai ser bom”. Passei também por espiritas mais ortodoxos, do tipo que encarnava um médico que me receitou um remédio para o aparelho digestivo. Aí eu fui procurar o remédio e ele não existia mais. O remédio era do tempo do médico que ele encarnava (risos).


Já tive tambem um bruxo de confiança, que fez coisas incríveis. Aquela música do Caetano dizia isso muito bem, “quem é ateu, e viu milagres como eu, sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar.” Eu vi cirurgias com gilete suja, sem a menor assepsia, e a pessoa saia curada. Estava com o joelho ferrado e saia andando. Eu fui anestesista dessa cirurgia. A anestesia era a música. O próprio Tom Jobim tocava durante as cirurgias. Eu toquei para uma dançarina que estava com problema no joelho. Ela tinha uma estréia, mas o ortopedista disse “você rompeu o menisco”. Ela estreou na semana seguinte, e na primeira fila estavam o ortopedista e o bruxo (risos).


Uma vez estava com um problema e fui ao médico. Ele me tocou e não viu nada. Aí eu disse “olha, meu bruxo, meu feiticeiro, quando ele apertava aqui, doia”. Ele comecou a dizer “mas essa coisa de feitiçaria...” e atrás dele tinha um crucifixo com o Cristo. Daí eu perguntei “como você duvida da feitiçaria, mas acredita na ressurreição de Cristo?”. Eu acho isso uma incongruência. Gosto de acreditar um pouco nisso, um pouco naquilo, porque eu vejo coisas inacreditáveis. Eu não acredito em Deus, acredito que há coisas inacreditáveis.



E quando você vê as religiões dominando meios de comunicação, elegendo senadores e deputados, isso te assusta?


Isso me preocupa bastante. Muitas vezes a gente sente um pouquinho dessa intolerância à qual me referi. Uma intolerância inclusive com as religiões de origem africana, como a umbanda. Há um elemento estranho e novo, que eu considero pernicioso. Não que eu julgue que os protestantes sejam piores que os católicos. Inclusive estamos vendo agora essa questão da igreja católica (n.r.: se referindo aos recentes escândalos de pedofilia). Alguma coisa tem que ser revista. Eu acho saudável os pastores brasileiros se casarem, e não acho saudável o celibato dos padres. Em algumas questões eles estão à frente, mas o que existe é muita picaretagem, vamos falar a verdade. E com uma penetração muito forte junto à população menos instruída, a igreja evangélica se espalhou e ocupou o lugar da católica em muitas áreas, e muitas vezes ocupou também o lugar da umbanda.




Em uma entrevista antiga para a jornalista Marília Gabriela você disse que não queria se ver como ídolo, senão teria até que tomar café fazendo pose de ídolo. Você consegue circular naturalmente e ser você todo o tempo?


O tempo todo. Não passa pela minha cabeça corresponder à imagem que fazem de mim. Posso ser muita coisa, mas besta eu não sou (risos). Eu moro no Rio, uma cidade cosmopolita onde não existe muito esse tipo de tietagem, ando por lugares públicos sem o menor problema. Não é que seja chato, mas às vezes, quando tenho algum impasse na escrita, numa letra de música ou num parágrafo qualquer de um romance, saio para caminhar. Normalmente eu procuro algumas ruas mais vazias, vou até a farmácia, ninguém me interrompe. É chato ser interrompido no meio de um pensamento. Você não vai destratar a pessoa. Então você tem que sair dos teus cuidados, do teu trabalho, para dar atenção para quem te pede uma foto, um autógrafo. Em época de férias o assédio é grande e perturba um pouquinho a caminhada, o exercício físico, como perturba quando estou trabalhando.



É um pouco por isso
que de vez em quando você dá uma escapada do Brasil e vem a Paris? Isso te permite respirar?


Muito mais. Eu aqui não tenho preocupação nenhuma, eu tomo uma distância do Brasil que me faz bem, fico menos envolvido com coisas pequenas que acabam tomando todo o meu tempo. Aqui eu leio o Le Monde todos os dias, e fico sabendo de questões como o Cáucaso, os enclaves da antiga União Soviética, que no Brasil passam muito batidos. O Brasil nesse sentido é muito provinciano, eu acho que o noticiário é cada vez mais local.


Meu pai, que era um crítico literário e jornalista, foi morar em Berlim no começo dos anos trinta, e foi lá que ele começou a escrever um livro que se tornou um clássico, Raízes do Brasil, quando ele teve uma visão de historiador, de fora do Brasil. A possibilidade de ter esse trânsito, de ir e voltar, eu acho boa. É como voce mudar de óculos, um para ver de longe e outro para ver de perto.



Nesse seu vai e vem Brasil-Franca, o que você traria do Brasil para a Franca, e vice-versa?


Eu traria pra cá um pouquinho da bagunça, da desordem. Os nossos defeitos, que acabam sendo também nossas qualidades. O tratamento informal, que gera tanta sujeira, ao mesmo tempo é uma coisa bonita de se ver. Você tem uma camaradagem com um sujeito que você não conhece. Aqui existe uma distância, uma impessoalidade que me incomoda.


Para o Brasil, eu gostaria de levar também um pouco dessa impessoalidade. Da seriedade, principalmente para as pessoas que tratam da coisa pública. Não que não exista corrupção na França.

Outra coisa que eu levaria pra lá é o sentimento de solidariedade, que existe entre os brasileiros que moram fora. Isso eu conheci no tempo que eu morava fora, e vejo muito aqui através das pessoas com as quais eu convivo. Eles se juntam. Como se dizia, “o brasileiro só se junta na prisão”. Os brasileiros também se juntam no exílio, na diáspora.



Na Europa a gente tem contato com muitos exilados econômicos, que não podem voltar ao Brasil porque precisam enviar dinheiro para casa. Quando você estava na Itália, durante os 18 meses de exílio político, teve que se virar como o imigrantes atuais?


Foi mais ou menos como os de hoje, porque na verdade eu fui para lá com o intuito de voltar para o Brasil. Eu tive que pedir permissão ao exército para sair e fui para Cannes, para o festival que existe até hoje, o Midem. Em seguida fui lançar o disco na Itália. Isso foi em janeiro. Minha mulher estava grávida, minha filha ia nascer em março, então eu precisava voltar. Foi aí que a coisa no Brasil piorou, ou foi quando tive mais noticias do que estava acontecendo. Fim de dezembro de 1968 foi o auge, logo depois do AI-5 (n.r.: Ato Institucional 5, que instaurou a censura e acabou com os direitos políticos da população). Não tínhamos mais informação, era só boato. Daí eu fui desaconselhando a voltar e tomei a decisão de ficar na Itália.


No começo tudo bem, estava contratado, morando num hotel. Mas a partir do momento que você vai para morar, tem que encontrar apartamento, tem que viver. Eu lembro que eu tinha direito autoral no Brasil, e meus pais me mandavam, se não me engano, 200 dolares por mês, o que dava para pagar o aluguel. Nessa época eu tinha que fazer qualquer coisa, ficava dependendo de um empresário italiano. Lembrando hoje é até engraçado. No começo eu era novidade. A Mina, aquela cantora muito famosa, tinha gravado A banda, e eu era apresentado como o autor da música. Eu ia à televisão, mas com o tempo você vai ficando figurinha velha e o trabalho vai escasseando.


O Toquinho foi pra lá com promessas de trabalho, que no final das contas não foram concretizadas. O melhor que a gente conseguiu fazer foi uma turnê, que salvou minha vida durante uns dois meses, com a Josephine Baker, la Baker, como diziam os italianos. Nessa turnê éramos vários artistas que faziam a primeira parte, porque ela era uma senhora que não agüentava fazer o show inteiro. Só que o público estava lá para ver a Josephine Baker, e não para ver Toquinho e Chico tocando bossa nova. Fizemos 40 cidades na Itália, toda noite tocando para um público de cabelo branco. Nós cantando “a Rita levou meu sorriso” e eles perguntando “quem são esses caras?”. A sensação de rejeição foi enorme. Nunca mais tive nada parecido.


Tivemos também programas furados, como um convite para tocar num castelo nos arredores de Roma. Daí chegamos e tinha uma duqueza, ou sei lá o que era, e uma meia dúzia de amigos, todos gays, num salão. Começamos a tocar e todos pediam “La banda, La banda”. Tá bom. Virei para o Toquinho e comecei “mamãe eu quero, mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar”, “cidade maravilhosa...”. Fizemos um resto de show assim, só carnaval, para a duqueza e sua meia dúzia de convidados.



No fim os convidados não pularam em cima de vocês?


Não. Eles queriam que a gente ficasse, sei lá pra quê (risos). Mas saímos pelos fundos.



E como é a história de Essa moça tá diferente, a sua música mais conhecida na França?


A coisa de trabalho estava só piorando e o que me salvou foi uma gravadora, a Polygram, pois minha antiga se desinteressou. A Polygram me contratou e me deu um adiantamento. E consegui ficar na Itália um pouco melhor. Mas eu tinha que gravar o disco lá. Eu gravei tudo num gravador pequenininho. Um produtor pegou essas músicas e levou para o Brasil, onde o César Camargo Mariano escreveu os arranjos. Esses arranjos chegaram de volta na Itália e eu botei minha voz em cima, sem que falasse com o César Camargo. Falar por telefone era muito complicado e caro. Então foi feito assim o disco. É um disco complicado esse.



Fizemos uma entrevista com o Mano Brown, lider dos Racionais MC’s, e ele disse “eu não sou artista, pois artista faz arte. Minhas músicas são armas, eu sou um terrorista”. Na época do regime militar, você era mais artista ou terrorista?


Eu acho que terrorismo seria muito forte. Eu não diria. Mas, de alguma forma eu pretendia, por intermédio da minha música, ter uma função pública, política, que incomodasse o regime. Eu me orgulhava disso. Não se tratava de terrorismo, mas de uma luta desigual contra o poder autoritário do regime militar. Era desigual, mas às vezes eu levava vantagem. Havia também as nuances, os dribles. E pensando hoje, você diz assim: “aqueles tempos negros, anos de chumbo”. Mas a gente se divertia também, e às vezes conseguia fazer um gol na censura.


Uma dessas vezes foi a invenção do pseudônimo, o Julinho da Adelaide. Na época existia uma coisa chamada censura prévia. Música, teatro, telenovela, sinopse de cinema, tudo era submetido à censura. Aí meu nome e os de outros artistas ficaram marcados, qualquer letra que eu mandasse para a censura corria o risco de ser vetada. Muitas músicas inocentes foram vetadas. Até que chegou ao ponto de eu gravar um disco com música só de outros autores, um sinal de protesto contra essa situação, o Sinal fechado. Eu incluí uma música que foi mandada para a censura com o pseudônimo, que virou no fim um heterônimo, que dava entrevistas, era um personagem. E a música, se tivesse sido mandada com o meu nome, não passaria. Mas ela passou. Uns dois anos depois foi revelada num jornal a verdadeira identidade do Julinho da Adelaide. Mas é um gol de placa, né?



Você fez duas ou três músicas como Julinho...


É. Também não podia abusar. Eles já estavam desconfiados. Eu que gravava as músicas e ninguém via esse sujeito. Ele dava entrevistas para os amigos.



Você disse que naquela época, pra passar pela censura, tinha que usar tanta metáfora que depois não sabia mais o que queria dizer. Hoje existem milhões de especialistas em Chico Buarque, capazes até de explicar o que você mesmo não entende.


Isso é muito rico. Muitas vezes compreendem além do que eu quis dizer. Cada texto que você escreve se presta a múltiplas interpretações. Às vezes isso me diverte, me distrai, mas às vezes eu não concordo. Agora realmente há canções feitas lá atrás cujos significados são enormes. Não lembro o que queria dizer com aquilo. Eu ouço, eu leio e eu não entendo. Eu penso assim, “eu devia estar com a cabeca muito ruim para escrever isso”. Então, havia naquela época um sentido qualquer, que se perdeu. Esses sentidos todos são efêmeros, a música vai ficando. A coisa escrita permanece. Há que ter muito cuidado com isso. Eu não me arrependo de ter escrito o que escrevi, mas muitas coisas ficaram datadas, porque eram presas a episódios pontuais, com um contexto especial. Então, eu sentia necessidade de responder àquilo, como quem faz hoje uma música sobre uma notícia que sai no jornal, que amanhã já está ultrapassada. Então foi um período da minha vida em que a atuação, a atividade política do cidadão, se sobrepôs à arte, né? Isso eu acho, às vezes, que valeu a pena.



E aquela história de que cada vinte músicas suas apenas duas passavam? Onde estão essas outras?


Aí há um certo exagero, porque muitas músicas minhas foram proibidas, mas muitas eu reaproveitava. Ou mudava um pouco a letra e mandava com outro nome. Depois havia também casos de músicas que eram censuradas parcialmente, então tinha um advogado da gravadora que ia a Brasília tentar se entender com a censura. Não era só uma pinimba de um artista com a polícia, era a indústria do disco que estava sendo prejudicada.


Por exemplo, a censura prévia autorizou Apesar de você. Quando saiu, o disco começou a vender muito, a passar na rádio, e a polícia se tocou e apreendeu. Foi ilegal, dentro já da ilegalidade que era uma cesura prévia, mas institucionalizada. Eles apreenderam o disco. Então você imagina a gravadora, que era holandesa, recebendo um borderô lá na Holanda e verificando as contas. “O disco tal saiu em janeiro e vendeu 100 mil cópias. Em fevereiro, não vendeu nenhuma”. Como é que pode? Alguma coisa tava errada. Como explicar isso para um holandês?


Havia interesses nisso aí, que não eram somente os meus pessoais. A indústria queria lançar um disco meu, então o advogado ia até lá e discutia, discutia. Ele às vezes me ligava e dizia “Chico, se você mudar tal palavra, a música passa”. Então eu falava pra ligar em meia hora. O Samba de Orly tem dois versos, eu acho (cantarola) “pede perdão, pela duração...”.



Não era “pela omissão um tanto forçada”?


Isso, “pela omissão um tanto forçada”. Essa parte era do Vinícius (de Moraes). Aí eu fiz o remendo, “pede perdão pela duração dessa temporada”.



Era a única frase que o Vinícius tinha feito na musica, né?

(Risos) Não, tinha mais. A maior parte da letra é minha, mas ele fez mais que uma frase. Existia uma troca de gentilezas entre eu e Vinícius.



Essa época inspirou a produção musical brasileira? De lá pra cá houve um empobrecimento dessa produção?


Não, acho que nos é que fazíamos muitas músicas naquele tempo. Hoje eu não componho a quantidade de música que compunha quando eu tinha vinte anos. Aquele tesão de chegar em casa e tocar o violão, isso vai mudando com o tempo. Agora, isso não se deve à censura, pelo contrário. Eu nunca tinha feito essa conta, até que um dia fizeram meu songbook e você vê que quando vai chegando os anos mais bravos da censura, 72, 73 e 74, a produção cai numericamente. A censura foi extinta oficialmente pelo Fernando Lira, o ministro do Sarney, em 85, eu acho. Mas a partir do Geisel ela já foi perdendo força. Eu não excluo que nessas conversas entre a polícia federal e as gravadoras alguns favores não eram trocados. Não posso afirmar, mas era esquisito. Havia uma familiaridade, uma amizade muito maior que no tempo da censura brava.



Nesse período
diversos artistas tinham uma posição mais engajada. O artista tem que ter um papel de denúncia social?


Eu não acho que o artista tenha que ter papel nenhum. Ele cumpre o que ele acha que lhe cabe. Não deve ser algo compulsório ou um porta-voz de alguma coisa. Acredito que na ditadura o artista tinha um papel mais relevante, mas por quê? Exatamente porque a imprensa era censurada, porque os partidos politicos eram cerceados. Hoje em dia não existe mais isso.


As pessoas vivem me perguntando: por que você não dá uma entrevista falando mal do governo Lula? Não falo porque me parece algo até redundante. Eu falava mal do governo na época que a Globo não falava mal.




Para nós, que trabalhamos com comunicação, sempre houve uma crítica pesada contra os veículos de massa no Brasil. Você acha que existe um plano cruel para imbecilizar o brasileiro?


Não, não acredito em nenhuma teoria conspiratória e nem sou paranóico. Agora, aí é a questão do ovo e da galinha. Você não sabe exatamente. Os meios de comunicação vão dizer que a culpa é da população, que quer ver esses programas. Bom, a TV Globo está instalada no Brasil desde os anos 60. O fato de a Globo ser tão poderosa, isso sim eu acho nocivo. Não se trata de monopólio, não estou querendo que fechem a Globo. E a Globo levanta essa possibilidade comparando o governo Lula ao governo Chavez. Esse exagero.



A mídia ataca o Lula injustamente?


Nem sempre é injusto, não há uma caça às bruxas. Mas há uma má vontade com o governo Lula que não existia no governo anterior. Na verdade, eu nunca vi um governo tão bombardeado pela mídia quanto o do Lula. Para o desespero desses meios de comunicação, esses ataques não correspondem a uma queda de popularidade do presidente. Pelo contrário, ela sobe. Então eu acho que há um contrapeso.



Depois de finalmente chegar ao poder, o Lula compôs com a fina flor da corrupção brasileira, como José Sarney e Jader Barbalho. Isso enfraqueceu um pouco a esperança política do país?


Sem dúvida. Para o Lula chegar onde chegou ele precisou fazer essas alianças. Ele não pode governar sem o PMDB, não tem como. Eu achava que, lá atrás, haveria possibilidade de fechar o PT com o PSDB. Eu me lembro da primeira eleição do Fernando Henrique, quando ele ganhou do Lula. Eu dizia que o Brasil estava muito bem servido tendo os dois como candidatos. Eu votei no Lula, mas acreditava que era já um grande avanço, como foi, a eleição do Fernando Henrique. Mas para se eleger ele teve que se associar ao PFL, né? E escolheu o PT como o grande adversário. A origem dessa desavença está em São Paulo, onde o PT e o PSDB ficam brigando.



E o que você acha da entrevista recente do Caetano Veloso, onde ele falou mal do Lula e depois acabou sendo desautorizado pela própria mãe?


Nossas mães são muito mais lulistas que nós mesmos. Mas não sou do PT, nunca fui ligado ao PT. Ligado de certa forma, sim, pois conheço o Lula mesmo antes de existir o PT, na época do movimento metalúrgico, das primeiras greves. Naquela época nós tínhamos uma participação política muito mais firme e necessária do que hoje. Eu confesso, vou votar na Dilma porque é a candidata do Lula e eu gosto do Lula. Mas, a Dilma ou o Serra, não haveria muita diferença. Não vai fugir muito do que está sendo traçado aí. Nem há muito espaço. Os dois vão ter fazer acordos que não prestam. E vão fazer um governo, que, dentro do possível, seja uma continuação do que está sendo feito até agora. Assim como em certa medida o governo do Lula foi uma continuação do governo do Fernando Henrique.



Foi mesmo uma continuidade?


Na economia, foi. Ele manteve as linhas principais do Fernando Henrique, já no primeiro momento, quando pôs o Henrique Meirelles como presidente do Banco Central, onde o certo seria ter alguem como o Aloísio Mercadante ou o Guido Mantega. Colocaram o Meirelles, que era ligado aos tucanos (n.r.: os políticos do PSDB são conhecidos como tucanos, em referência ao animal mascote do partido), para manter a linha traçada pelo Fernando Henrique.


Acho que o Lula tomou medidas bem inteligentes. Soube lidar melhor com as crises. Bom, estamos entrando muito em economia, que não é a minha especialidade. Estou falando leigamente. Agora, fora isso, ele incrementou os programas socias, que também de certa forma são continuidade dos programas do Fernando Henrique ou da dona Ruth Cardoso (n.r.: ex-primeira dama). O Bolsa Família e outros programas sociais não foram um rompimento, mas um aprimoramento.



Você gostou do Fernando Henrique como presidente?

Eu acho que o primeiro mandato dele foi bom. Mas ele estragou a própria biografia com a história da reeleição, foi um erro a maneira como aquilo foi feito. Em primeiro lugar, mudando a regra do jogo. Nós, que jogamos futebol, sabemos bem que isso não se faz. E sabe-se que rolou dinheiro para a aprovação daquela emenda constitucional, ali foi uma mancha enorme. O Fernando Henrique está pagando o preço disso. Na reeleição fica difícil de mexer. Quem é que vai mudar para ferir os próprios interesses? Complica tudo, pois já não é mais uma questão de princípio. Acabar com a reeleição significa o quê? Em 2014, fulana nao se reelege mais, então vai em benefício de quem? Interessa a quem uma mudança dessa?


O que você tem escutado?


Eu raramente paro para ouvir música. Já estou impregnado de tanta música que eu acho que não entra mais nada. Na verdade, quando estou doente eu ouço. Inclusive ouvi o disco do Terça Feira Trio, do Fernando do Cavaco, e gostei. Nunca tinha visto ou ouvido formação assim. Tem ao mesmo tempo muita delicadeza e senso de humor.


Mas eu não preciso de escutar música para a criação da melodia ou da letra. Quando eu passo para a última etapa do processo, que é a gravação, aí sim eu vou entrar em contato com músicos que têm outro tipo de informação. Que podem inclusive dar uma sonoridade mais contemporânea para aquela música. Eu posso assimilar ou rejeitar isso tudo. Eu não quero fazer um disco voz e violão, não sou purista. Eu aceito, mas isso não precisa fazer parte do meu processo criativo, nem acredito que alguma coisa que eu vá ouvir agora, nessa altura da vida, acrescentará ao meu processo criativo. Eu tenho muita coisa a dizer em forma de música e de letras. O acabamento, sim, vai sofrer influências e acréscimos. São bem-vindos.



E a produção da música atual, como você vê? A crise da indústria fonográfica, a força da internet, o formato digital.


Eu não entendo nada disso, mas pergunto às pessoas. Outro dia o Carlinhos Brown me disse “agora não é mais disco. Disco só é bom para fazer show”. Tanto que as gravadoras agora estão se interessando pelo agenciamento de espetáculos. A coisa se inverteu, pois antigamente você fazia show para vender disco, hoje em dia você faz disco para vender show.


Eu não tenho vivido isso porque minha condição estacionou. Durante muito tempo eu fiquei só escrevendo, e não gravo já faz uns cinco anos. Mas o meu próximo disco eu já não sei como vai ser. Nem sei se vai ter disco. Estou começando a fazer música, mas não sei se vão sair só na internet, ou em que formato.



Mas vai ter turnê? Aliás, você ainda tem prazer em subir no palco?


Quanto à turnê, não sei. Talvez tenha, se eu sentir muita vontade. Eu gosto do palco, mas turnê é uma coisa muito cansativa. Viajar, ficar em hotel, pegar avião, esperar no aeroporto. Tá me cansando um pouco.


Eu gosto do contato com os músicos, de ensaiar. Agora o chato é que você passa a vida em função. Faz uma turnê, o teu dia tá comprometido, porque você não pode fazer tudo o que você quer. Você não pode jogar futebol porque vai ficar com a voz cansada, não pode comer laticínio porque pode dar muco, não pode tomar uma cerveja porque vai te prejudicar. Eu não gosto disso.


Você tem estúdio em casa?

Não, eu sou péssimo. Pra você ter uma idéia, pro meu último disco, que não faz tanto temo assim, eu gravava minhas músicas para mandar para o arranjador em fita K7, porque na minha casa ainda tinha um gravador K7. Agora isso já não e possível, então aprendi a gravar num negócio tipo esse aqui (aponta para um iPhone). Mas ainda não sei como passa disso para o computador, para mandar o mp3 por internet. Não aprendi ainda porque não precisei, mas quando precisar eu me viro.



Ainda falando no Mano Brown, ele tem uma pergunta pra você: “por que o Caetano Veloso é MPB e o Bochecha (n.r.: funkeiro do Rio) não?”


Eu acho que o Bochecha é. Aliás, essa história de MPB não fomos nós que inventamos. Acho até antipático esse nome. Eu nunca falei com um colega meu “escuta, vamos fazer uma MPB lá em casa?”. Os jornais inventaram isso, puseram essa marca. Mas eu não sei onde vai a MPB, onde tá o samba, vocês têm que perguntar aos jornalistas que criaram. Isso não é comigo.





O Brasil é um dos poucos países que consomem mais música nacional do que estrangeira. Você acha que tem a ver com toda essa diversidade, que somos auto-suficientes em criação, ou isso é reflexo de uma fraca difusão do que existe fora?

Eu não sabia disso. Tem muita música estrangeira difundida no Brasil. Esse pessoal todo, como a Beyoncé, aparece no Brasil e lota estádios de futebol. O brasileiro não é xenófobo. E a música brasileira não precisa de defesa, ela é muito rica, muito variada. Não tem essa de que o sertanejo está ocupando espaço. Essa lamúria é muito chata. “Ah, tem que ensinar música nas escolas”. Eu acho isso muito chato. Virar institucional, compulsório. Tem espaço para todo mundo, assim como tem espaço de criação muito amplo. Há uma variedade na nossa música. São muitas culturas.


A música francesa te influenciou de alguma maneira?

Eu ouvi muito. Nos anos 50, quando comecei a ouvir muita música, as rádios tocavam de tudo. Muita música brasileira, americana, francesa, italiana, boleros latino americanos. Minha mãe tinha loucura por Edith Piaf e não sei dizer se Piaf me influenciou. Mas ouvi muito, como ouvi Aznavour.

O que me tocou muito foi Jacques Brel. Eu tinha uma tia que morou a vida inteira em Paris. Ela me mandou um disquinho azul, um compacto duplo com Ne me quitte pas, La valse à mille temps, quatro canções. E eu ouvia aquilo adoidado. Foi pouco antes da bossa nova, que me conquistou para a música e me fez tocar violão. As letras dele ficaram marcadas para mim.

Eu encontrei o Jacques Brel depois no Brasil. Estava gravando Carolina e ele apareceu no estúdio, junto com meu editor. Eu fiquei meio besta, não acreditei que era ele. Aí eu fui falar pra ele essa história, que eu o conhecia desde aquele disco. Ele disse “é, faz muito tempo”. Isso deve ter sido 55 ou 56, esse disquinho dele. Eu o encontrei em 67. Depois muito mais tarde eu assisti a L’homme de la mancha, e um dia ele estava no café em frente ao teatro. Eu o vi sentado, olhei pra ele, ele olhou pra mim, mas fiquei sem saber se ele tinha olhado estranhamente ou se me reconheceu. Fiquei sem graça, pois não o queria chatear. Ele estava ali sozinho, não queria aborrecer. Mas ele foi uma figuraça. Eu gostava muito das canções dele. Conhecia todas.


Jacques Brel compôs uma das melhores descrições de sofrimento por amor, em Ne me quitte pas: “deixe-me ser a sombra da sua sombra, a sombra da sua mão, a sombra do seu cão”, mas acho que ninguém nunca retratou dor de amor como você fez em Pedaço de mim. De onde você tirou isso?

Era uma coisa muito violenta. Tem partes dessa música que eu não sei porque eu escrevi. Era o tempo de barra pesada, tempo de ditadura. É uma canção de amor, mas é uma canção de dor quase física, né? É letra de ditadura.


Essa música eu pulo quando não estou bem.

Eu também (risos).


Falando de encontros geniais, você tem uma foto com o Bob Marley. Como foi essa história?

Foi futebol. Ele foi ao Brasil quando uma gravadora chamada Ariola se estabeleceu lá e contratou uma porção de artistas brasileiros, inclusive eu, e deram uma festa de fundação. O Bob Marley foi lá. Não me lembro se houve show, não me lembro de nada. Só lembro desse futebol. Eu já tinha um campinho e disseram “vamos fazer algo lá para a gravadora”. Bater uma bola, fazer um churrasco, o Bob Marley queria jogar. E jogamos, armamos um time de brasileiros e ele com os músicos. Corriam à beça.


Vocês fumaram um baseado juntos?

Não. Dessa vez eu não fumei.


Falando nisso, você acha exagerada a repressão ao consumo de drogas no Brasil?

É muito exagerada. Eu sou a favor da descriminalização de todas, cantei isso no meu ultimo disco, “maconha sé se comprava na tabacaria e drogas na drogaria”. Claro que mediante uma ordem médica, como era antigamente. Antigamente cocaína se comprava na farmácia, durante os anos 20 e 30.

Eu, garoto estudante, comprava bolinha - chamavámos bolinha – sem receita, sem nada. Eu comprava Dexamil, que era violentíssimo, anfetamina pura, deixava o estudante acordado. Hoje em dia tem um controle, que é ótimo, para esse tipo de droga. Mesmo calmantes e ansiolíticos. Acho que uma receita médica é necessária para esse tipo de remédio, inclusive a cocaína. Já a maconha, eu não vejo nenhum sentido para a forma como e praticada a sua repressão. Eu não vejo um prejuízo ao organismo causado pela maconha maior que o tabaco ou álcool causam. Não entendo a quem interessa isso, se não aos próprios traficantes.


Houve algum outro encontro que marcou sua vida?

Quando apareceu a bossa nova, eu larguei tudo. Até então eu ouvia tudo, imitava Elvis Presley, cantava Only you do The Platters, dançava twist, mas quando apareceu a bossa nova eu reneguei inclusive os sambas antigos. Por acaso eu conhecia o Vinícius da casa do meu pai, ele era amigo do meu pai. Mas não conhecia o Tom (Jobim) e nem o João Gilberto. Eu demorei a conhecê-los porque eu morava em São Paulo. Os meus colegas no Rio se encontravam normalmente na casa do Vinícius, e eu não. Eu os via às vezes num teatro, e eu ficava besta tentando fazer os acordes. Eu aprendia os acordes ouvindo o disco e aprendendo errado, fazendo a posição dos dedos para tentar tirar um som parecido. Enquanto que o Edu Lobo, que é só um ano mais velho que eu, já conhecia essa gente, e já podia roubar acorde de olho. Então eu fui conhecer o João Gilberto muitos anos depois, ele se casou com a minha irmã. E o Tom Jobim eu conheci depois e fiquei muito amigo dele. Pô, conhecer o Tom Jobim pra mim era tudo.


E essa sua migração para escritor, isso é encarado como um momento da sua vida, já era um objetivo?

Isso não é atual. De vinte anos pra cá eu escrevi quatro romances e não deixei de fazer música. Tenho conseguido alternar os dois fazeres, sem que um interfira no outro.

Eu comecei a tentar escrever o meu primeiro livro porque vinha de um ano de seca. Eu não fazia musica, tive a impressão que não iria mais fazer, então vamos tentar outra coisa. E foi bom, de alguma forma me alimentou. Eu terminei o livro e fiquei com vontade de voltar à musica. Fiquei com tesão, e o disco seguinte era todo uma declaração de amor à música. Começava com Paratodos, que é uma homenagem à minha genealogia musical. E tinha aquele samba (cantarola) “pensou, que eu não vinha mais, pensou”. Eu voltei pra música, era uma alegria. Agora que terminei de escrever um livro já faz um ano, minha vontade é de escrever música. Demora, é complicado. Porque você não sai de um e vai direto para outro. Você meio que esquece, tem um tempo de aprendizado e um tempo de desaprendizado, para a música não ficar contaminada pela literatura. Então eu reaprendo a tocar violão, praticamente. Eu fiquei um tempão sem tocar, mas isso é bom. Quando vem, vem fresco. É uma continuação do que estava fazendo antes. Isso é bom para as duas coisas. Para a literatura e para a música.


Tanto em Estorvo quanto em Leite derramado o leitor tem uma certa dificuldade em separar o real do imaginário. Você, como seus personagens, derrapa entre essas duas realidades?

Eu? O tempo todo, agora mesmo eu não sei se você esta aí ou se eu estou te imaginando (gargalhadas).

Completamente. Eu fico vivendo aquele personagem o tempo todo. Entrando no pensamento dele. Adquiro coisas dele. Você pode discordar, mas chega uma hora que tem que criar uma empatia ou uma simpatia. Você cria uma identificação. E alguma coisa no gene é roubado mesmo de mim, algumas situações, um certo desconforto, não saber bem se você é real, se você está vivendo ou sonhando aquilo. Por exemplo, agora que ganhamos de 10 a 1 (referência à pelada que jogamos três dias antes), eu saí da quadra e falei: “acho que eu sonhei. Não é possível que tenha acontecido” (risos).



Você é fanático por futebol?

Não sou fanático por nada. Mas eu tenho muito prazer em jogar futebol. Em assistir ao bom futebol, independentemente de ser o meu time. Quando é o meu time jogando bem, é melhor ainda, pois eu consigo torcer. Agora mesmo, no Brasil, tinha os jogos do Santos.

Mas eu vou menos aos estádios. Eu não me incomodo de andar na rua, mas quando você vai a alguns lugares, tem que estar com o cabelo penteado, tem que estar preparado para dar entrevistas. Aqui eu estou dando a minha última (risos). Aqui é exclusiva. Fiz pra Brazuca e mais ninguém. Eu quero ver o pessoal jogar bola. Então eu vejo na televisão. E quando não estou escrevendo, aí eu vejo bastante.


É verdade que um dia o Pelé ligou na sua casa, lamentando os escândalos políticos no Brasil, e disse “é, Chico, como diz aquela música sua: ‘se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão’”?

É verdade (risos). Eu falei “legal, Pelé, mas essa música não é minha”. O Pelé é uma grande figura. Nós gravamos um programa juntos. Brincamos muito. Conheci o Pelé quando eu fazia televisão em São Paulo, na TV Record, e me mudei para o Rio. Os artistas eram hospedados no Hotel Danúbio, em São Paulo. O mesmo onde o Santos se concentrava. Então eu conheci o Pelé no hotel. E sempre que a gente se encontra é igual, porque eu só quero falar de futebol e ele só quer saber de música. Ele adora fazer música, adora cantar, adora compor. Por ele, o Pelé seria compositor.


E você, trocaria o seu passado de compositor por um de jogador?

Trocaria, mas por um bom jogador, que pudesse participar da copa do mundo. Um pacote completo. Um jogador mais ou menos, aí não.


Você tem mais paixão pelo Fluminense ou pela seleção brasileira?

Assistir é diferente de jogar. Ultimamente a seleção brasileira não tem me dado grandes alegrias. É estranho, porque não vejo muita gente ver treinos da seleção. Mesmo as classificatórias, não havia muita vibração com esse time do Dunga. E por outro lado tá ganhando tudo, se classificou bem. E quando o meu time está muito ruim, eu também não vou assistir. Não sou esse fanático que acompanha até terceira divisão. Eu gosto de bom futebol.


Quais são seus ídolos no futebol?

Pelé, Pagão, Garrincha... Eu falo desses aí porque são do tempo que eu era mais louco por futebol e queria ser jogador. Eu tinha 12, 13 anos de idade, morava perto do Pacaembu, então via todos os jogos. Quando eu não tinha dinheiro, eu aprendi que assim que começava o segundo tempo eles abriam os portões, então eu ia de graça. E coincidiu que nessa época, em 55, começou a surgir o grande time do Santos. Eu não sou santista, minha mãe me fez ser Fluminense. Mas o Santos jogava muito no Pacaembu, e eu vi esse time nascer, antes mesmo do Pelé. Quando o Pelé chegou ele foi a cereja no bolo. Já tinha o velho Jair, já tinha o Pagão, o Pepe, os irmãos Ramiro e Álvaro. Era um timaço. Logo depois veio o Edu, o Coutinho, tinha o Del Vecchio, o Vasconcelos, o Titi, depois o Pepe. Eu me apaixonei pelo time do Santos, tanto que eu fui ver no Pacaembu Santos e Fluminense. O Santos ganhou e eu estava vibrando. Que beleza de time!

Nesse tempo eu quis ser profissional. Até fui a uma peneira do Juventus. Eu tinha esse sonho, tinha paixão por futebol, essa paixão que a gente tem até os 16 anos. Depois não é tão forte. Nesse tempo eu ainda ia muito ao Pacaembu. E quando ia passar férias no Rio, eu via o Fluminense e o Botafogo, para ver o Garrincha, principalmente. Mas o time do Santos foi o que me encantou mais.


O Santos de 55 era melhor mesmo que o Botafogo de Garrincha, Zagalo, Nilton Santos?

Não sei dizer se era melhor. Foi o que eu vi mais, o que me encantou mais. O Botafogo era um grande time, mas eu não me lembro exatamente. Tinha o Quarentinha, que fazia muito gol, mas eu me lembro do Garrincha. Nilton Santos, sim, mas eu só prestava atenção nos jogadores de ataque, eu queria ser atacante. Eu gostava do Nilton Santos quando ele avançava, o que era uma novidade, pois não existia ala. E o Garrincha era uma coisa à parte. Eu ia para rir. Eu ria. Realmente, não é fantasia.


Você consegue manter a regularidade de 3 vezes por semana?

Quando estou no Rio, três vezes por semana. Esse campo onde jogo foi aberto em 79. Tem 31 anos que a gente se reúne lá. Muita gente já não joga mais. Muitos filhos de jogadores estão lá com a gente. E agora o (José Luís) Runco, meu médico, meu e da seleção brasileira, me obrigou a comprar uma cadeira para fazer exercícios. Eu tive dois problemas com o joelho, meio seguidos. E ele falou que seu eu quiser jogar o resto da vida, tenho que praticar esse reforço muscular, fortalecer a coxa atrás e na frente, para não sobrecarregar o joelho. Então, podendo, vou até 95 (risos).


O Toquinho disse numa entrevista que joga muito melhor que você. Quem é melhor, afinal?

Esse é o tipo de pergunta que minha modéstia não me permite responder. Há testemunhas que o time dele é freguês nosso. Ele já não joga há algum tempo, já não jogava grande coisa (risos).

Agora, a última vez que eu ia encontrar com ele para jogar, ele não apareceu. Eu acho que ele já pendurou a chuteira. Mas ele tem o filho jogando. Essa alegria ele tem, eu não. Tem um filho que joga, que está treinando no Corinthians. O Rivelino me disse que ele puxou a mãe, joga muito bem (risos).


Você ainda pretende pendurar as chuteiras aos 78 anos, como afirmou?
Não. Já prorroguei. Tava muito cedo. Agora eu deixei em aberto. Podendo, vou até 95 (risos).


O Niemeyer está com 102 anos e continua trabalhando. Aliás, não só trabalhando como ainda continua com uma grande fama de tarado (risos).

Ele me falou isso. Eu fui à festa dele de 90 anos e ele me disse: “o importante é trabalhar e ó (fez sinal com a mão, referente a transar)”. Aí eu falei “é mesmo?” e ele respondeu “é mesmo”.


Falando nisso, o Vinícius foi casado 9 vezes. Você acha a paixão essencial para a criação?

Sem dúvida. Quando a gente começa – isso é um caso pessoal, não dá pra generalizar – faz música um pouco para arranjar mulher. E hoje em dia você inventa amor para fazer música. Se não tiver uma paixão, você inventa uma, para a partir daí ficar eufórico, ou sofrer. Aí o Vinicius disse muito bem, né? “É melhor ser alegre que ser triste... mas pra fazer um samba com beleza, é preciso um bocado de tristeza, é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba não”.

Quando eu falo que você inventa amores, você também sofre por eles. “E a moça da farmácia? Ela foi embora! Elle est partie en vacances monsieur!”. E você não vai vê-la nunca mais. Dá uma solidão. Eu estou fazendo uma caricatura, mas essas coisas acontecem. Você se encanta com uma pessoa que você viu na televisão, daí você cria uma história e você sofre. E fica feliz e escreve músicas.


Pra finalizar. Se você fosse escrever uma carta para o seu caro amigo hoje, o que você diria?

Volta, que as coisas estão melhorando!


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